
As palavras do João – A 120 azul João Gago da Câmara
Éramos dois no Fiat preto. Eu a conduzir, ele atrás adormecido. Caia-lhe a cabeça sobre o peito e as madeixas loiras seguiam o balanço do carro emoldurando-lhe o rosto de anjo. Tão serena imagem no espelho retrovisor! 400 quilómetros de estrada pela frente. Uma das alucinantes auto-estradas portuguesas. Céu azul como quase sempre neste país abençoado pelo clima. Ninguém aqui cumpre as regras do código de estrada e muito menos as recomendações. Há uma névoa feita de poeira em todo o percurso, como uma espécie de túnel feito de poluição. É mais denso do que a bruma continental que se avista mais além. As janelas estão ligeiramente abertas, o ar é fresco apenas no que respeita à temperatura. Este verão pouco quente permite que haja sempre verde nas bermas, na sua maioria de pinheiros e eucaliptos. Curiosamente, já se nota que a agricultura se tornou uma opção considerável para os portugueses. Vêem-se campos de milho, milhares de oliveiras em linha, e vinhas. Ainda muitas matas, mas já poucos baldios. Muitas vezes passamos entre montanhas cortadas a meio para que a estrada seja sempre reta e sem subidas ou descidas. Muita pedra, solos pobres. É isso que se vê nos declives. A vegetação tem de lutar arduamente para sobreviver num país que aparenta ser em muitos pontos uma pedreira colossal. As árvores parecem tristes vistas aqui do Fiat, que corre a 120 azul. As suas folhas estão penduradas dos ramos com as pontas viradas para o solo, não para a luz. Sofrem, suponho, de stress, provocado pelo fumo que se escapa dos carros. A minha preciosa carga continua alheia ao que se passa à sua volta. O meu neto ainda não tem consciência das agressões de que está sendo alvo o planeta que o acolheu há três anos. Um dia será pai e avô como eu. Resta saber que herança lhe caberá.
João Gago da Câmara