As palavras do João – Saudades, muitas, da velha Lisboa
Pára-se o carro para deixar passar e quem passa não agradece. De contrário, sobrecarrega o sobrolho entendendo a delicadeza como ato hostil.
No café pede-se a bica a altos berros, “quero uma bica”, sem um por favor, embora o local esteja repleto doutros clientes que procuram um momento de vagar e de acalmia. Apita-se por tudo e por nada e quase se encosta o carro ao outro numa ânsia doentia de passar depressa, passando stress, sendo deselegantes e desagradáveis.
Desafia-se para a pancada a todo o instante, bastando para tanto um cidadão civilizado aconselhar um brutamontes a ter calma. Estaciona-se em cima dos passeios e sobre as passadeiras. Os parquímetros estão sempre bloqueados porque grupos de marginais, máfias do leste inclusivamente, destroem-nos diariamente para deles tentarem extrair dinheiro. Passam-se cada vez mais sinais vermelhos num claro desrespeito pelo trânsito local e pela lei que o rege, porque a polícia, parca em recursos, aparece cada vez menos na grande urbe.
Motas pesadas e scooters esvoaçam na cidade por entre os carros e mesmo nas autoestradas, onde atingem velocidades alucinantes. Relatos de ataques são comuns por todo o lado e a toda a hora, sobretudo a idosos, no propósito de os roubar, quando o Ministério da Justiça acaba de pagar 1,1 milhões de euros com o nosso dinheiro por uma ferramenta informática de gestão dos inquéritos crime do Ministério Público que acabou por não instalar. Arrumadores de viaturas riscam os carros a quem não lhes deixa a gorjeta e brigam entre eles à paulada quando um invade a área do outro.
O calão é ordinariamente usado por todo o lado e à frente de seja quem for. Os taxistas, essa raça alfacinha impetuosa e arrogante, continuam a espargir azedume pelas ruas, arrancando de rompante, apitando, praguejando, gesticulando, agredindo.
Atravessa-se passadeiras a passo lento, e a rir, em atitudes manifestamente provocatórias. Os sem abrigo invadem as soleiras dos prédios e deixam papelões dobrados, cobertores rotos, sacos plásticos e garrafas vazias.
Lisboa está assim. Lisboa hoje é isto. Saudades, muitas, da velha Lisboa.
João Gago da Câmara