As palavras do João- De Marrocos a Portugal
Marrocos, Tanger, Norte de África. Um cheiro imundo. As ruas fedem a urina. Gente com roupa velha e suja mira o estrangeiro de soslaio. Nas vias comerciais quase se vende a alma por meia dúzia de patacos, e, mitigando-se, consegue-se comprar praticamente tudo a preços de pechincha. Os turistas, despreocupados e incautos, e pior ainda os idosos, são alvos centrais do amigo do alheio, chegando aos hotéis roubados que nem tristes, e os larápios nem vê-los, desaparecem na multidão. Há códigos entre os feirantes foras da lei que lhes vão permitindo desaparecer após passarem rapidamente aos cúmplices o produto roubado.
Um misto de tapetes estendidos uns por cima dos outros, sapatos, botas, jarras, malas, coiros, colares e anéis são propostos aos visitantes europeus que atravessaram o canal nos ferry-boats vindos de Algeciras, cidade da Província de Cádiz pertencente à comunidade autónoma da Andaluzia. Cemitérios misturados com entulho, prédios caídos no meio doutros em pé, buracos nas estradas, pessoas sentadas na relva debaixo de árvores em jardins muito altos mais parecidos com montras – os jardins sobem e descem ao sabor de pequenas colinas. Nos bairros as casas pequenas parecem casinhas de arrumos e nas praias mulheres vestidas de negro lavam as vestes em águas lamacentas, quase pantanosas, misturadas com a espuma castanha. Não é de todo aconselhável comer em lado algum de Tanger a não ser no hotel – a comida não é de confiança, é servida nas demais das vezes contaminada por águas inquinadas. Marrocos, um pavor!
Mas há ainda o contraste social que é enorme no reino norte africano. Explicava o taxista existirem somente duas classes sociais no país: os muito ricos e os muito pobres. Classe média é algo de absolutamente desconhecido naquele modelo político e social. Querem visitar a minha casa? – perguntou, brincando, e levou-nos na sua carripana verde e branca a bater chapa ladeira acima até um faustoso palácio com dois seguranças à porta armados de metralhadoras ligeiras. Só consegui ver o palácio sumptuoso ao fundo com um “Rolls” azul escuro estacionado no pátio frente à porta. E a pedido do taxista os gorilas permitiram-me entrar apenas por segundos na casa da guarda que exibia fotos nas paredes do anafado mutimilionário sentado no cockpit de um dos seus dois aviões a jato, neste caso de um citation X, aeronave executiva de alcance intercontinental considerada das mais rápidas do mundo.
Semelhanças com Portugal? Sim, a classe média que desaparece, a produtora de riqueza, a fazedora do desenvolvimento … na voragem acéfala e incontida de pseudo-iluminados decisores políticos. Ricos mais ricos e pobres bem mais pobres. E também códigos, muitos códigos, só percetíveis por eles, os fora da lei, que tudo permitem, até apresentar leis ao povo contra a constituição da República. Saudades, nenhumas de Marrocos, mas também uma dor infinda por ter que ser português neste injusto Portugal.
João Gago da Câmara