Ilha de São Jorge – Olho Nú

NOTA POSITIVA AO MUNICÍPIO DAS VELAS, PROMOTOR DESTE EVENTO E AO AUTOR DESTA MAGNIFICA OBRA, ANTÓNIO PEDROSO.

Um dos meus objectivos ao conceber este painel, à semelhança de outros que tenho feito, foi além de assinalar a data dos 50 anos da crise sísmica, criar também a possibilidade de estes azulejos serem uma forma de iniciar estórias com factos históricos. Mais do que criar arte, eu gosto de despertar curiosidades, e a partir deste trabalho vai haver muitas pessoas que tem vivências para contar, experiências para partilhar.

Este é somente o ponto de partida.

Diz-se que uma imagem vale mil palavras, neste caso uma imagem vale algumas estórias.

Poderá ser um avô a contar uma estória a um neto.
Um guia a explicar a um grupo de turistas.
Um emigrante a narrar aos lusos descendentes.
E o início da estória poderá ser a frase já aqui escrita:
O dragão que julgávamos dormente e fossilizado no Atlântico estremeceu.
O rugir das suas entranhas provocou medo e causou sofrimento ao povo Jorgense.

O dragão de S. Jorge, o dragão do Apocalipse que foi esta crise sísmica, fica representado mais vez nesta praça, além de já estar reproduzido na calçada portuguesa, e na escultura em pedra basáltica.

As cenas do painel são divididas por registos de sismógrafo, mesmo que um estrangeiro não saiba ler português vai entender que este trabalho trata de algo relacionado com sismos.

A figura central destes azulejos é a igreja matriz das Velas, sagrada em 1675, e cuja fachada aqui representada é da década de 1930.

Nem as vetustas paredes deste templo quinhentista ficaram incólumes á fúria da terra, e sofreram danos graves o que levou a ser completamente renovada e infelizmente adulterada a sua fachada.

À esquerda, na antiga fabrica conserveira Marie de Anjou, surge um grupo dos sinistrados, que evacuados á pressa das Velas e Rosais foram realojados inicialmente na Calheta, seguindo alguns mais tarde para as ilhas vizinhas.

Ao centro da cena temos o Reverendo padre Manuel Garcia Pedro, cura da matriz das Velas e o Dr. Sá então presidente da Câmara.

A razão pela está um clérigo no centro da cena, não foi só pelo facto de os sacerdotes estarem muito presentes na vida rural das comunidades, mas porque perante a desgraça que se abateu sobre as populações, foi de extrema importância a atividade orientadora e conciliadora do clero que acalmaram as pessoas e deram algum conforto espiritual. Na dor de amargura cruciante, por receio do pior, a população atemorizada e ansiosa, suplica amparo e confiança, conforto verbal dos seus padres nos quais depositam olhares de esperança.

A grande fé e religiosidade, dos jorgenses, foi importante na época para encararem a dura realidade da catástrofe.

À direita uma mulher reza o terço. Nos Rosais outra mulher leva a coroa do Divino Espirito Santo.

A esquerda tem uma mãe com dois filhos, uma menina que traz um molhe de espigas de trigo, vem da freguesia dos Rosais, o então chamado celeiro da ilha.

O vestido tem espigas de trigo bordadas. Ela segura angelicalmente o trigo que em breve iria desaparecer da nossa agricultura.

Os homens dobram cobertores que eram distribuídos a quem chega.

O conforto era mínimo, mas o pão nunca faltou. Escassez, sim, mas só durante algumas horas. A generosidade do povo do Norte Grande, da Urzelina, da Calheta e do Topo está representada pela mulher que segura uma concha e tem aos pés um caldeirão de sopa.

A vila das Velas ficou ao abandono total, centenas de animais vagueiam livres pelas ruas e pelo jardim publico, somente o Tio Herculano, assim conhecido, se recusa a abandonar a vila e obstinadamente resiste só, tratando dos animais. Na janela típica de três guilhotinas estilhaçada, está um candeeiro de petróleo. Extinguiu-se a luz naquela casa, ruíram as paredes e a vida dos seus habitantes, no entanto permanece o candeeiro á espera que a chama da reconstrução lhe dê uma nova luminosidade.

A freguesia dos Rosais foi a mais atingida pelos sismos, reduzida a um amálgama de casa desventradas numa imagem lancinante e desoladora. Muitas foram as barracas pré fabricadas que foram cedidas pelos Americanos para realojar os sinistrados, como se vê á direita, e algumas perduraram até aos nossos dias.

Há uma planta decorativa “galactite s tormentosa” o conhecido cardo, que aparece no painel. Foi escolhida por dois significados, um porque chegou a ser usado para a fermentação do leite para o típico queijo de S. Jorge, principal fonte económica da ilha, outra porque é uma planta que provoca sofrimento pelos muitos picos que tem.

Esta crise, além dos muitos prejuízos materiais, ficou marcada pelo muito sofrimento causado às pessoas, que se viram privadas dos seus bens, da sua casa, da sua ilha.

Ao centro folhas com notas soltas esvoaçam desordenamento, ganhando asas e transformando-se num pássaro, que leva no seu voo a memória da história que atravessa fronteiras e chega a terras de além-mar. Os acontecimentos dramáticos de 1964 impressionaram o mundo. S. Jorge chegou aos noticiários da BBC em Londres entre outras emissoras das principais capitais europeias e americanas, a notícia da desgraça atravessa as fronteiras tão facilmente.

Os barcos aqui representados são alguns dos que eficientemente socorreram os jorgenses e os levaram para as ilhas vizinhas nomeadamente a ilha Terceira. Tripulações caridosas e comandantes com almas generosas, que enfrentando a fúria do mar, numa luta titânica não olhando a perigos nem sacrifícios, arriscam a sua vida para salvar as vidas do próximo.

A Espalamaca, o Terra Alta, o Girão o mais pequeno cargueiro da “ Insulana”, as fragatas, Corte Real e Santa Luzia, e os vários navios estrangeiros, cujos nome estão registados neste painel.

S. Jorge reergueu-se, apesar do surto de emigração para Angola nos anos subsequentes, e 50 anos depois, e alguns terramotos depois, nomeadamente 1973, 1980 1998, os jorgenses mantem-se firmes e persistentes, porque como diz o poeta referindo-se aos açorianos, “corre-lhe nas veias o basalto negro e na lembrança vulcões e terramotos.”

Texto de Antonio Pedroso