Crónica de Opinião – 18 de abril de 2014

As palavras do João – Ó mar, ó mar, ó mar …

açores_radio_lumena_noticias_turismo_ilha_cronica_João_Gago_CâmaraÓ mar, ó mar, ó mar”! … , diz Maria, só. Eles os cinco, os filhos, noras e genros, embarcaram há anos no navio do sonho rumo à emigração, mas ela, fiel à ilha, ao seu canto, arrumos e amanhos, por cá se foi deixando ficar, e ficou, só. Deambula pela rua principal da freguesia, refugiada no seu tempo, envolta no seu lenço, xaile preto e saia comprida plissada, de casa para o cerrado e para a loja, e, ao domingo, rogativa, lá está na eucaristia da igreja do sítio. Interpelam-na vizinhos e amigos: tia Maria, como vai? Mas Maria apenas responde: “Ó mar, ó mar, ó mar … “ , esse tratante a quem não perdoa por lhe ter levado os dela.

As ilhas estão cheias destas e doutras histórias de emigração, de lá e de cá, provavelmente sendo este, na açorianidade, o nosso mais memorável relicário. É que na ilha acontece história de porta em porta. Logo mais abaixo surgem-nos outros contares, os de Manuel Ferreira, viajado, ainda bebé, com os pais do Brasil para os Altares. A família queria comprar uma casa na Presa Grande, lugar de avós para onde toda a vida lhes puxou o sangue. Falava Manuel da viagem ter sido penosa e triste pois a dada hora sempre chega a malfazeja tempestade, e veio uma que lhes partiu o mastaréu. Do que os pais lhe contaram, e do que ainda nos chega de uma neta septuagenária, Manuel, já partido para o outro lado da vida, contava que, para além do tempo normal do percurso, perderam três longas semanas no mar onde ficaram à deriva à mercê da pavorosa infinidade atlântica. Quis Deus que se desse o aparecimento de um navio de bandeira italiana que em boa hora com eles se cruzou e os acolheu a bordo, transportando-os a Lisboa. Não fosse assim, todos pereceriam pois a comida escasseava ao ponto de já só ser distribuída uma laranja por dia a cada viajante. E frisava Manuel, do que lhe contara sua mãe, era tanta a fome que até comiam casca e tudo. “A vida por vezes é feita de pequenos nadas” – comentava o brasileiro ilhéu. Ó, se não é! Manuel voltaria ao Brasil, onde, na velha Rio de Janeiro, viveu da venda de gado que ia comprando em Manaus, onde dizia não existir, ao tempo, água potável. Acarretavam por isso barris de água rio acima, regressando à origem com gado para vender. Ouro Preto, em Minas Gerais, era a sua cidade predileta, relevando a existência aí da mais bela igreja que jamais havia visto, a de São Francisco de Assis, estilo rococó, possuidora de um assombroso fresco de teto mostrando Nossa Senhora cercada por anjos músicos. Esta foi uma obra que imortalizou o famoso “Aleijadinho”,  um arquiteto e escultor brasileiro de meados do século XVIII, considerado na sua arte um dos maiores do Brasil colonial.

É bonito nestas ilhas, sobretudo, o apego à terra, por mais pequena que ela seja e por menos que ela contenha. Até contra a imensidão e riqueza dos países de emigração, até contra os caprichos e teimosias do mar, a mãe ilha sempre ganha … , até no canto triste que emerge do vale e que a montanha, melancólica,  vai repetindo: “Ó mar, ó mar, ó mar!”

 João Gago da Câmara