As palavras do João – E depois do adeus …
Tens umas boas pernas para correr e um bom lombo para carregar a J3 e a mochila. Um destes dias conheces África – soou aos ouvidos do candidato como um tambor a voz do furriel que pressagiava um breve embarque para uma das então províncias ultramarinas. Após a inspeção, o obrigado aspirante a combatente sentou-se à mesa corrida do grande refeitório mais os colegas para almoçarem uma espécie de salada cheia de batatas e com muito pouco atum mais umas rodelas de cenoura aqui e além. Os pratos em alumínio estavam revestidos a sebo que dava para lustrar dez pares de botas, mas era ali que se comia … e calados. Ó Estrela, não como isto, queres a minha salada? – perguntou o maçarico ao colega do lado que não se fez de rogado e papou o seu almoço e o do enojado companheiro. O pretenso magala não foi a África, nem sequer à tropa, porque das armas nasceram cravos e de cravos germinou o novo Portugal. África era o terror dos pais de todos nós, jovens. Quem se esquece das despedidas no porto de Ponta Delgada com os navios carregados de juventude a acenar para terra com os bivaques cinzentos de tristeza enquanto as lágrimas teimavam em não abandonar os rostos … e, do lado de lá, de terra, os gritos atrozes das mães desventradas a entregarem ao Estado guerreiro os frutos dos seus ventres! Era a maior das aventuras porque a maior das desventuras. Foi no 24 também que o avô materno, oficial de censura do antigo regime, sublinhava as palavras mais incómodas dos textos escritos pelo genro de crónicas que este ia escrevendo para o velho “Açoriano Oriental”, porque tudo quanto indiciava subversão era inevitavelmente cortado, o mesmo é dizer, censurado. A liberdade tinha limites. Escrever, sim, mas com linguagem moderada e sobretudo favorável ao regime. Brigas, ó quantas! … , com o pai a protestar do lado de cá da razão e o avô teimoso do lado de lá a insistir em justificar o injustificável.
Era chegado o 25: não vais para a guerra, pá. A guerra acabou! – anunciaram, alto, os primeiro avisados. A democracia chegou, finalmente. Parabéns, pá. E que alívio para a mãezinha, que, ao tempo, dos quatro filhos só tinha um macho, aquele, o quarto e último a ser dado à luz. Soluçou o dia todo pela casa num misto de emoção incontrolada entre a razão do fardo da tristeza anteriormente imposta e o da alegria enfim conquistada.
E depois o 26 a descolonizar terras negras e o MFA a tomar conta do país, a sucessão de guerras ideológicas, as prisões a encherem-se e o regime a vacilar à mercê das convulsões de movimentos, associações, partidos e sindicatos, embora ao som de palavras de esperança, de paz, de fraternidade e solidariedade. Consagrou-se a nova Constituição da República. Punha-se para trás tempos de ditadura. Singrava-se rumo à democracia.
É de rendermo-nos perante a valentia dos capitães de Abril e deste povo, mas é também de questionarmos se é com apaniguados e afins que cumprimos Portugal e Abril, em atropelos sucessivos à Constituição e hipotecas persistentes à especulação das alcateias financeiras mundiais desta nossa dileta Pátria.
João Gago da Câmara