As palavras do João – A ti, pai
“Ajuda sempre os outros”, tantas vezes me disse, adivinhando-se-lhe nesses momentos, naquela cara segura e dura – só predicado dos fortes – a convicção dos verdadeiros.
Não é fácil escrever esta crónica quando os dedos se recusam a teclar e a voz embarga.
Tive, do meu ponto de vista, o melhor pai que alguém poderá alguma vez ter na vida. Morreu sexta-feira passada, 23 de maio de 2014, aos seus provetos 85 anos de idade, após debater-se, firme e corajosamente, contra uma doença que teimou em levá-lo para lá do mundo.
Chamava-se João Gago da Câmara. Dele herdei o nome com o mais incontido orgulho.
Foi presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada e iniciador da Associação de Municípios da Região Autónoma dos Açores, foi delegado de turismo de São Miguel, fundou o Lyons Clube de São Miguel, foi Cônsul do Panamá, da França e da Suécia, pôs-se à frente da grande manifestação da lavoura que levaria ao derrube do governador civil dos Açores e à instauração da Autonomia Constitucional, atitude que lhe valeu ser preso político do regime comunista de então, iniciou os cursos de preparação matrimonial nos Açores ajudando muitos jovens e usou o desempenho de todos estas funções sobretudo a favor do bem comum. Aos fins de semana, calcorreava montes, vales e matos de espingarda às costas, pois a caça era a sua veneração. Não era pessoa de vaidades e de penachos – o cargo era para servir os outros, nunca a si próprio, e os partidos políticos tinham o valor que cada um lhes queria dar, considerando-os ele tão só a ponte para chegar ao que mais amava, o povo da sua terra. João Gago da Câmara não vacilava quando se tratava de optar entre a humildade e a arrogância, entre a vaidade e a modéstia, entre a justiça e a iniquidade, entre a solidariedade e o afastamento, entre a fraternidade e a contenda, entre a coragem e o temor. “Ajuda sempre os outros”, tantas vezes me disse, adivinhando-se-lhe nesses momentos, naquela cara segura e dura – só predicado dos fortes – a convicção dos verdadeiros.
A família, antes de costas voltadas por força dos afazeres da vida, foi no fundo a sua missão, pois desacomodava-se na desunião. Foi preciso a morte trazer-nos, a filhos e netos, um sopro do patriarca, que todos nós familiares sentimos, indiferenciadamente, e que nos fez cair em nós e abraçarmo-nos e beijarmo-nos efusivamente. E foi entre prantos vindos dos mais profundos territórios da dor que todos decidimos nunca mais darmos caminho ao afastamento e nos reunirmos bastas vezes, por nós, mas sobretudo por ele. Como é possível a morte fazer-se vida e trazer-nos o calor intenso dessa paz inigualável que nos invade a alma e nos indica o caminho? Embora antes cético face ao outro lado da vida, afirmo hoje, com o mais autêntico convencimento, que só pôde ter sido ele (“Ajuda sempre os outros”) entre nós.
João Gago da Câmara